Dos encontros de formação - sobre o Bem e o Mal


 

Numa manhã de muito frio começou o segundo módulo.

 

 

 

Tantas coisas aconteceram. Novamente o encontro com o grupo, a manada. Esse foi um dos meus temas e pedidos. Já na primeira volta da fala com a pedra comentei que estava esperando esse contato e sentindo a necessidade de estar mais perto dos cavalos. Relatei minha experiência antes do módulo, aquele exercício com Sandra na fazenda foi muito interessante. Posso dizer que foram dois momentos: o primeiro sem conexão e o segundo conectados a partir da criação do campo e do alinhamento com o propósito de sentar-nos lá de coração.

 

 

 

As atividades com Rudd começaram intensamente, fomos chamados para ação. Na primeira atividade tínhamos que desenhar uma dinâmica para que a pessoa pudesse trabalhar sua questão da melhor forma possível. Criamos um labirinto para um dos integrantes. Foi muito interessante! Ele achou que era muito difícil e para sua surpresa o cavalo o seguiu com muita facilidade. Terminou o exercício e ele não percebeu que ainda existia conexão.

 

 

 

No segundo dia cheguei quando a dinâmica estava em andamento e comecei a meditar. Na rodada da pedra contei meus dois sonhos: dos 10 bebês e a comunidade, os cavalos eram o meio de comunicação. A roda continuou até que chegou a oportunidade de uma menina falar: ela estava sentindo uma grande tristeza, seus pais estavam separados, e também em seu coração. Ruud sentiu aquela dor registrada na parede de trás, rasgada ao meio como o coração da menina. Ele perguntou se estava disposta a realizar um movimento. Ela escolheu um pai e uma mãe. Fomos escolhidos eu e a Silvia (nome de minha mãe). Senti aquela familia fria, desintegrada. Não conseguia mexer-me, não sei o que me imobilizava. A menina chorou muito. Eu sustentava minha dureza interior. O amor não fluia entre os pais. Aquela criança chorando desconsoladamente me lembra a minha infância. A frase veio: isso é assunto nosso, de adultos, você pode ser feliz. Eu conseguia dar meu peito, consolava aquela menina como se fosse meu filho, ou eu mesmo. Entrei num estado de empatia com aquela situação que foi uma viagem a outro momento-espaço. Ruud percebeu isto e a familia foi acolhida por toda a turma depois de um pedido dele. O abraço coletivo chegou e começamos a mexer-nos como se estivéssemos dentro de um útero, um vai-e-vem nos foi embalando, apaziguando, conduzindo-nos até a canção de ninar que chegou para aconchegar-nos. Eu entrei em transe, chorava desde fazia um tempo, em silêncio, profundamente, acariciava o rosto daquela menina como se estivesse acariciando o rostro de todas as crianças despojadas de um pai sobre esta terra. A música era doce , confortável e ao mesmo tempo podia reconhece-la, não era estranha apesar de ser a primeira vez que a escutava. O movimento cessou, cada um voltou a seu lugar como foi instruído por Ruud. Eu continuava muito mexido, meu olhar estava afetado por aquele momento recente. Foi uma experiência marcante.

 

 

 

De tarde foi a constelação em grupos e escolhi o tema relacionado a minhã irmã Cecilia. Minha irmãzinha, muito forte. Eu necessitava olhar dentro de sua alma, mergulhar lá no fundo até encontrar-nos. Quem nos estava conduzindo não entendia o bem estar do sistema: digo isto porque eu precisava olhar no fundo de sua alma e nos colocaram em posições que não era possível nos ver. Pedi para me mover e olha-la, quando pude ve-la, ela caiu de joelhos frente a mim. Foi surpreendente, inesperado e compreensível ao mesmo tempo. Queria que se levantasse por si mesma, mas ela precisava de minha ajuda. Era muito pequena e frágil. Me ajoelhei em sua frente, lhe disse que a amava e estava esperando por ela, que tem um lugar em meu coração. O cavalo branco venho até ela e se colocou nas costas dando-lhe o apoio , a força da terra. Ficamos em pé juntos. Ha’ewete!

 

 

 

Na manhã seguinte Ruud propôs um exercício com um vídeo sobre um episódio acontecido em Londres. Depois de assistir tínhamos que nos identificar com alguém do episódio. Eu me identifiquei com o assassino. Outras pessoas se identificaram com a vítima, com o Estado, com os políticos e os poderes judiciais… Foi interessante a discussão e o que foi gerando e acontecendo. Aconteceu um desacordo entre dois integrantes do grupo quando uma mulher estava dando sua opinião . Ela explicou que isso pertence a seu sistema por causa de seus irmãos, que sempre brigavam para protegê-la.

 

A ação do rapaz assassino foi ficando esclarecida porque é parte de um povo que sofreu muitas violações e não é uma vingança. É uma maneira de pedir justiça. Seus pais possivelmente foram mortos, sua cidade arrasada junto com o resto da família.

 

O clima foi tenso, desde o princípio sabia que tinha que dizer, mas tudo se esclarecia cada vez mais com a passagem do tempo, como se as peças de um quebra cabeça estivessem se montando, ficou nítido para mim que minha sentença era decisiva, só tinha que seguir esperando até o momento certo : a peça final. Todo o mundo estava aprontando suas coisas para o intervalo, dois segundos passaram e os chamei para o espaço da meditação novamente. Ruud me cedeu a palavra. Era claro para mim que aquela morte foi um ato de coragem, de responsabilidade, de amor . Eu só via as mãos , a faca ficou invisível. As mãos eram limpas e falavam: entrego esta vida com coragem e responsabilidade, com profundo amor dou uma morte limpa , pura e sagrada.

 

Após falar isso meu semblante ficou mais sereno , em paz, me libertei. Tinha cumprido. Ruud percebeu isto e pediu que todos mundo me observassem, eu continuava impassível desfrutando aquele estado de aguyje , de maturidade. Ele falou que meu sistema estava completo, que ele sabia que os guaranis buscavam uma terra sem males, e que agora podiam integrar “o mal “ no coração. Eu disse que essa terra é Ywy marã heyn, mas não disse que essa terra está dentro e fora de nós mesmos.

 

 

 

Fora da sala, a caminho do café, sentia a lembrança profunda do filme Avatar, a cena na qual o protagonista passa a integrar a tribo depois do rito da morte limpa de um animal. Falando com uma amiga do curso, me disse que tinha muita gente dentro da sala, índios altos, com lança e muitas plumas, eram muitos. Naquela manhã de inverno eu senti o tata porã – fogo sagrado iluminando, estava aceso guiando nosso caminho. Ha’ewei!

 

 


Constelando a endometriose

 

 

 Ontem foi uma Constelação tão reveladora como surpreendente.

 

 

 

Uma mulher veio para olhar para um sintoma: endometriose. Eu já sabia na teoria que uma das dinâmicas profundas desse sintoma é a violência.

 

Esta era nossa segunda tentativa de constelar, a sessão já havia sido cancelada anteriormente por causa de fortes chuvas e ventos.  Nesta ocasião o dia se apresentava calmo e o sol trazia esperanças de uma tarde pacífica. Porém eu não sabia nada do que estava por acontecer na sessão de Constelação com Cavalos, que é sempre um Grande Mistério. Isso me completa, me motiva  e encanta nesta profissão. O protocolo de trabalho é se conectar, ativar seu estado de presença, seguir sua intuição e realizar a leitura do campo que se configura diante de nós nesse tempo/ espaço.

 

 

 

Dentro do processo de conexão do aty / cerimônia Guarani Ñandewa iniciamos o trabalho. De alguma forma intuitiva recebo as informações de que a ancestralidade africana já está presente no campo e pede para ser incluída, olhada e respeitada. Olhando para os cavalos no campo sinto e vejo que esse movimento vem da mãe da minha cliente e por isso pergunto para ela sobre a mãe da mãe dela: o que você me pode contar da sua avó materna? Ela me diz que sua avó foi muito maltradada, que inclusive o esposo dela cuspia em seu rosto. Vemos no campo uma guerra entre cavalos, perseguição, violência. Ficamos impactados quando dois cavalos envolvidos numa energia de briga ficam ajoelhados um diante do outro por muito pouco tempo.  A disputa parece ser tão séria que um quer derrubar o outro. Quando aponto para este fato ela confirma essa leitura e ainda revela questões como falta de empatia e desinteresse no primeiro casamento e no segundo percebe que está envolvida com o interesse de ser cuidada na velhice, como se fosse um investimento porque precisaria de alguém no futuro.

 

 

 

Entrando no campo em contato com a manada vemos que esse sentimento está em ressonância com a mãe do pai, que não gostava de negros, excluía sua família de origem. O fato de ter sido abandonada e abusada trouxe novas compressões sobre a atuação do amor cego onde a alma dizia para essa avó: eu também. Movimentos de libertação aconteceram para dissolver este padrão e olhar para o novo: a África também importa, ela existe.

 

 

 

Seguindo o movimento no campo olhamos para um cavalo distante, um tanto oculto na floresta.  Ele está representando sua avó materna que foi capturada. Nesse momento sinto que  a cliente precisa dizer algumas frases ativando processos de reconhecimento e gratidão. Após essas frases serem ditas o cavalo inicia um processo de vir até ela. Quando se detém na  sua frente ela se curva e reverencia profundamente o povo da floresta. Quando esse movimento chega até o limite do amor pelas vítimas a energia do perpetrador surge no campo. A cliente percebe esse movimento e rapidamente guio ela até um local interno onde pode acolher ambos sem diferenças, sem preferências. Assim finaliza essa sessão.

 

 

 

Saindo do Rancho uma nuvem preta gigante cobre todo o céu. O ar fica congelado e em instantes uma forte chuva de granizo traz a consciência do trauma tocado.

 

 

 

As dores que um indivíduo carrega  no  corpo podem ser liberadas a partir do processo da Constelação Familiar com Cavalos. Elas estão no individuo, na alma familiar, na alma de um povo ou de uma raça.

 

Essa liberação também  pode ser manifestada no gelo que cai do céu e se derrete na terra . Ha’ewete .

 

 

 

Quatro Barras, 03 de Novembro de 2020